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Uma revolução (legal, democrática e pacífica) que permitiu a expansão dos serviços públicos no Brasil

30/10/2024

Por José Fogaça

A eleição do presidente Fernando Henrique, em 1994, veio a ser um ponto de inflexão no curso histórico da democracia brasileira. Desde o final dos anos 80, o mundo seguia celeremente um fluxo de mudanças extraordinário – e, até então, simplesmente impensável.

Em 1989 havia caído o Muro de Berlim.

Na União Soviética, Gorbatchev pusera em andamento um decidido movimento de reformas: a Glasnost, uma abertura política do regime; e a Perestroika, a grande reestruturação econômica. Em 1991, a União Soviética fora dissolvida e simplesmente deixara de existir.

Em seguida, no bloco socialista da Europa Oriental, todo o sistema econômico soviético vem abaixo, peça por peça, como em um jogo de dominó. Patenteava-se ao mundo o fracasso de economias que se assentavam em um regime fechado de empresas estatais, adotando rígida planificação e recusando regras do mercado.

No final de 1990, Margareth Thatcher, renuncia ao cargo de primeira-ministra após 11 anos de grandes tranformações nas bases da economia inglesa, substituindo as empresas estatais por empresas privadas na prestação dos serviços públicos básicos.

No Brasil, o impeachment de Collor, em 1992, parecia jogar por terra todas as esperanças de uma democracia recémconquistada. Itamar Franco, que o substituiu, enfrentou de início fortes turbulências, mas teve a sabedoria de compor seu governo e suas relações com o Legislativo chamando para perto de si as lideranças mais sólidas e confiáveis do Congresso Nacional.

O Plano Real, posto em marcha em junho de 1994, veio redimir, afinal, todas as dificuldades enfrentadas por Itamar em seu governo de transição. FHC se elege, a partir daí, presidente da República, no transe de uma profunda reforma monetária, o bem sucedido Plano Real. O Brasil vencia uma década de tentativas malogradas e deixava definitivamente para trás quarenta anos de luta insana contra o dragão da inflação.

O ano de 1995, primeiro ano do governo FHC, viria a ser um marco na história da prestação de serviços públicos no Brasil. Vivia-se um período de intensa e volumosa produção legislativa. A nova Constituição do Brasil, recentemente aprovada, impunha um labor constante e tumultuado ao Congresso Nacional, na elaboração de uma extensa legislação infraconstitucional.

No Brasil de 1995, o velho telefone fixo ainda era o meio predominante nos serviços de telecomunicações. Mas a posse de um aparelho e de um número com registro e assinatura na companhia telefônica era uma verdadeira raridade. O telefone fixo pessoal era privilégio das famílias de classe média alta ou dos mais ricos. Era um bem tão escasso que tinha que ser incluído na declaração do Imposto de Renda como patrimônio relevante. Realmente era um absurdo que uma simples assinatura de um simples serviço público tivesse que constar da declaração do IR.

A energia era um dos grandes gargalos do país em meados dos anos 90. O Brasil tinha uma estrutura de pesadas empresas fornecedoras de energia elétrica, em sua maioria pertencentes ao Estado. O mundo vivia a era da globalização dos mercados e o Brasil precisava de energia elétrica em abundância para crescer. No entanto, o modelo instalado não dava esperanças de que isso pudesse acontecer no ritmo necessário à nova realidade. Os
investimentos eram poucos e a capacidade de expansão era pequena.

No ramo do petróleo, não era diferente. O monopólio da Petrobrás impedia o governo federal de contratar leilões para exploração de novas jazidas e emperrava o aumento da produção. Em 1995, o Brasil remava em uma produção de 750 mil barris/dia, o que representava menos de 70% do que precisava ser refinado diariamente para a produção de derivados.

No último trimestre de 1994, FHC envia ao Congresso a Lei de Concessões, que abria a regulamentação do setor para a participação do setor privado em serviços que, por sua natureza, tais como construção e operação de rodovias, energia elétrica, telecomunicações, eram responsabilidade do Poder Público. Iniciava-se ali uma mudança transcendental no modelo estatal brasileiro.

A imprensa noticiava que algumas concessões feitas a empresas estatais não geravam investimentos, principalmente em linhas de transmissão. Sabia-se oficialmente que gastos inúteis de 2 bilhões de dólares eram feitos por ano, em função da lentidão e da incapacidade de investimento das empresas estatais. A demanda dos próximos anos no setor elétrico no Brasil iria exigir investimentos da ordem de 5 bilhões de dólares anuais no Brasil.
Um modelo predominantemente de mercado precisava ser implantado gradualmente. Os primeiros passos do governo demonstraram isso: a partir de uma profunda reforma no setor, caberia ao capital privado assumir a responsabilidade pela expansão do sistema elétrico em nosso país.

No curso de tantas transformações, foi necessário implantar um sistema independente de regulação, principalmente para lidar com os novos atores, as empresas privadas prestadoras de serviços públicos. Foi criada a ANEEL, Agência Nacional de Energia Elétrica, em seguida vieram a ANATEL, Agência Nacional de Telecomunicações e a ANP, Agência Nacional de Petróleo.

Em todas as leis aqui mencionadas, foi-me concedida a tarefa (e a honra) de exercer o trabalho de Relatoria. Foi um momento de intenso debate em comissões e plenário, e de grande esforço de negociação para o parecer às emendas, mas sabíamos que estávamos mudando o curso da história.

As empresas estatais do sistema Telebrás se diziam incapazes de investir na expansão da telefonia celular por falta de recursos e de capacidade de endividamento. O sistema adotado em 1995 fez o Brasil chegar, em nossos dias, a 258 milhões de celulares (número de agosto de 2024), mais de um telefone por cidadão.

O Brasil hoje é autossuficiente em produção de petróleo. Produzíamos pouco mais de 700 mil barris por dia em 95, hoje são 3,448 milhões de barris diários. Só precisamos importar gasolina porque nossa indústria de refino não consegue acompanhar o consumo nacional.

As empresas privadas que operaram os serviços públicos ajudaram a que o Brasil desse um passo extraordinário, mas as agências reguladoras foram fundamentais e imprescindíveis como órgãos independentes e de excelência para que isso acontecesse. Era preciso separar a regulação, com técnicos altamente qualificados, com regime de mandato, com prazo determinado e autonomia, tanto em relação ao governo, quanto em relação às empresas operadoras dos serviços. Às agências reguladoras caberia zelar pelos deveres e pelos direitos do usuário, tendo sempre como escopo o interesse público.

A interferência na área de regulação, por parte de um grupo politico que eventualmente ocupe o governo, confrontado com empresas de grande porte, é totalmente não recomendável, para evitar situações de promiscuidade. As agências reguladoras foram criadas não só para maior funcionalidade e operacionalidade do sistema, mas também para atuarem como um antídoto contra a corrupção.

As agências reguladoras devem prestar contas, em relatório anual, do cumprimento das políticas do setor que venham a ser definidas pelo Legislativo e pelo Executivo, e estão sob o controle externo do Congresso Nacional, com auxílio do Tribunal de Contas da União. O que espero, ao concluir este relato, é que as propostas com origem no governo atual, que venham a tramitar no Legislativo, não interfiram na essência dos princípios que deram origem às agências reguladoras, uma experiência bem sucedida há 30 anos no Brasil.

Autores José Fogaça