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[ARTIGO] A crise da racionalidade, por José Fogaça

30/01/2024

Como estamos iniciando 2024, achei interessante trazer aos colegas da Fundação um tema que pode ser conectado às eleições deste ano. São, na verdade, observações e leituras que venho recolhendo e trabalhando, em torno de um dos grandes enigmas psicossociais da nossa época: a crise da racionalidade.

Como é possível discutir política hoje? Como pode ser viável e convincente o discurso político na era das meias-verdades? Como enfrentar o embate eleitoral de 2024? Coloco no papel despretensiosamente algumas ideias que talvez possam nos ajudar a debater este momento incrivelmente mutante e instável que vivemos. E imagino que isso possa, também, significar um elemento de reflexão para o nosso trabalho na FUG.

As pessoas se perguntam: “Por que, no terreno da política principalmente, vem se ampliando de forma avassaladora o número de pessoas que são totalmente impermeáveis a fatos comprovados e argumentos racionais? Por que é tão difícil fazer alguém deixar sua postura negacionista e dispor-se a aceitar um pensamento meridianamente lógico, cartesiano, simples, como – por exemplo – a comezinha necessidade de proteger a saúde de todos pela vacinação?” Recentemente, li uma entrevista do psicólogo social Joshua Aronson no jornal Valor e fiquei impressionado com o peso que essa impossibilidade de diálogo vem tendo nos processos eleitorais em todo o mundo. Essa questão, nos últimos anos, ganhou extraordinária relevância em vários países democráticos. Os últimos exemplos – me ocorre agora lembrar – são a Holanda e a Argentina. No Brasil, na campanha de 2024, isso talvez não seja diferente.

O modo de fazer política, nas sociedades democráticas, está mudando. A questão não é simples. Joshua diz que o vínculo tribal que molda a vida de determinadas pessoas é mais forte que o poder da razão. É interessante refletir. Porque “vínculo tribal” não é exatamente o mesmo que “vínculo social”. O primeiro está associado a uma ordem de hierarquia e subordinação; o segundo diz respeito a uma ordem de liberdade e escolha, própria das sociedades livres e democráticas.

O vínculo tribal da era moderna se expressa em um viés iliberal e ilógico com que alguns indivíduos percebem os fatos científicos, sociais, morais e econômicos do seu tempo. Tal modo de ver o mundo está mudando a política e as eleições – justamente nas maiores democracias. Aronson, é claro, não se refere especificamente ao Brasil, ele fala pensando em todos nós, os animais humanos de qualquer parte do planeta, indistintamente. Ele está pondo seu foco sobre essas pessoas que vêm emergindo na nova era, que se tornaram os símbolos mais recentes de uma nova vida líquida, estranhamente condicionada por uma adesão maciça à pós-verdade, às fake news e ao negacionismo. São seres humanos iguais a nós em tudo: têm o seu trabalho, profissão, carteira de identidade, endereço, educação formal máxima ou mínima, família, filhos – em tudo são semelhantes a nós outros. Mas diferem profundamente em algo fundamental: agarram-se aos valores de sua bolha existencial e neles se fecham, desprezando com inusitada firmeza – em suas atitudes, suas relações, ou mesmo em sua vida – a validade universal de conceitos que se tornaram consensuais no campo científico, político, econômico ou mesmo moral. Isso é um fenômeno sociológico nada simples. Joshua Aronson denomina isso “tribalismo”.

O tribalismo se opõe à ideia de sociedade liberal-progressista. Para Aronson, não se trata de uma “nova politização” dos grupos que antes se comportavam como alienados. Trata-se, isto sim, de um retrocesso: um novo modo de tribalização do mundo. É uma condição na qual a pessoa se exclui de muitas de suas relações sociais para se fechar em uma bolha social e assumir uma posição contrária aos novos costumes, aos novos padrões culturais e principalmente às transformações sociais e políticas. O novo tribalismo impede as pessoas de ver a hipocrisia e a ruptura ética em que se envolvem, ao aderirem a posicionamentos negacionistas. É espantoso como mães (e pais), em perfeita consciência, preferem o risco de ver seu filho entubado, exânime, prostrado em um leito de hospital, do que antes levá-lo a um posto de saúde para vacinação. É absolutamente assustador constatar que um valor menor, como o direito de recusar a orientação da ciência e das autoridades, sobrepõe-se a um valor maior: a vida de uma criança e a vida das pessoas que podem ser contaminadas por quem não se vacina. Não dá para entender.

A simples palavra de um líder político pode levar milhões de pessoas a aderir, com patética submissão, à ideia de que urnas eletrônicas são programadas com falhas diabólicas. Em nome de tal disparate, desencadeia-se uma perigosa reação contra o voto e contra resultados eleitorais legítimos. Famílias, crianças, idosos, jovens, são capazes de se reunir à frente de um quartel militar e ddicar-se a longas e penosas vigílias por dias e noites, não para rezar pelas almas e pela salvação de entes queridos, mas para deixar claro aos generais que o que desejam da parte deles é algo nada piedoso, mas brutal: uma intervenção armada violenta e avassaladora no país, não importando quantas centenas ou milhares de pessoas venham a
morrer no curso dessa ação. Joshua Aronson tem uma explicação para isso: trata-se de uma grande onda de restauração mudial do tribalismo. As pessoas querem pertencer a uma tribo. A tribo molda suas mentes e seus corações: as pessoas de
índole tribal não veem a hipocrisia e o contra-humanismo que caracteriza o seu grupo.

Estamos passando por uma grave crise de racionalidade no mundo. Nas eleições de 2024, alguns partidos políticos brasileiros, que foram moldados no últimos 30 anos nos princípios cartesianos e lógicos do Estado de Direito, da Democracia e da Constituição Cidadã, nos valores universais da Educação Pública e dos Direitos Humanos, entre eles principalmente o MDB, poderão ser surpreendidos nas ruas por um discurso cada vez mais irracional e indisputável, a partir de uma grande parcela da população.

Como fazer frente a isso? A resposta, infelizmente, não está dada. Nem pronta.

(A crise da racionalidade continua)

Autores José Fogaça, ex-senador e presidente do Conselho Editorial e de Formação Política da FUG