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Inteligência Artificial e Educação: O Futuro é um Livro Aberto

24/07/2024

José Fogaça

A Inteligência Artificial não nos levará a uma guerra apocalíptica entre humanos e supercomputadores. A IA, como várias experiências vêm demonstrando em diferentes lugares do planeta, quando usada como elemento de apoio, coloca um indivíduo ou toda uma coletividade em um patamar de habilidade, eficiência e produtividade muito mais elevado do que aqueles que não contam com essa vantagem. A verdade é que o fato de poder ser aplicada como ferramenta de produtividade tem garantido notável sucesso e reconhecimento à IA, até agora. Enquanto alguns quebram a cabeça e hesitam, outros já tomaram o freio nos dentes e já se encontram em desabalada carreira.

O certo é que o mundo não vai se dividir simploriamente entre humanos, de um lado, contra computadores inteligentes (ou robôs), de outro. Não será uma batalha dos robôs contra a humanidade. Haverá tensão no futuro, sim, mas a tensão será dada – de forma cada vez mais dramática – pela distância abissal entre aqueles que souberem usar plenamente a Inteligência Artificial e aqueles que não o souberem. A IA vai criar um fosso intransponível entre humanos. A desigualdade suprema. É o que temo.

A leitura recente de um artigo do professor Li Jiang, da Universidade de Stanford, me surpreendeu. Li Jiang acredita convictamente que IA e Educação podem vir a constituir uma nova sinergia e uma associação não desestruturante da melhor metodologia educacional.

Educar, diz ele, é, entre outras coisas, incentivar a curiosidade, o interesse intelectual e o espírito de inovação, a capacidade de enfrentar problemas e desenvolver soluções.

O professor diz coisas um tanto quanto chocantes para a nossa tradição pedagógica. Por exemplo: ele considera que, se uma criança tem que calcular tudo que ela precisa projetar ou entender com cálculos feitos de cabeça, ela ficará para trás. Não há por que ela não fazer isso de forma mais rápida e com mais acerto, utilizando-se de um celular ou computador. Com bom senso, critério e, na hora certa, não há por que não lançar mão da tecnologia. É o que se depreende das observações do professor.

Para a pedagogia brasileira, é quase um sacrilégio. No Brasil, utilizar calculadora em sala de aula sempre foi algo abominável, desde as primeiras calculadoras portáteis dos anos 70. Jiang, portanto, nos deixa perplexos com sua visão nada ortodoxa sobre isso.

Essa não deveria ser uma prática na fase em que o aluno está aprendendo os elementos iniciais da matemática, no Ensino Fundamental – pensamos nós, penso eu, sempre pensamos assim aqui no Brasil.

Mas Li Jiang diz que os jovens que concluem o ensino fundamental e, principalmente, os que concluem o ensino médio, estão sendo tolhidos por uma prática de sala de aula tipicamente discursiva, que se concentra em currículos utilizados e reutilizados ano após ano, décadas, sem quase nenhuma mudança. É o chamado conhecimento antigo, diz o professor de Stanford. (Em tempo: não se deve confundir “conhecimento antigo” com conhecimento da Antiguidade, claro). Jiang quer é superar práticas de ensino pedagogicamente obsoletas.

O conhecimento antigo, adverte Li Jiang, precisa ser mesclado com elementos contemporâneos, inovadores, visões que despertem curiosidade e novos interesses. Emular o cérebro para a novidade é uma das formas de educação mais imprescindíveis da era de mudanças que vivemos.

No futuro do trabalho, ser admitido em um emprego dependerá, claro, de aptidões diversas, mas dependerá, cada vez mais, de uma nova expertise: quanto o pretendente ao cargo consegue aumentar sua produtividade com o apoio da inteligência artificial. Uma competência que poderá fazer muita diferença na vida de um jovem. E, com certeza, uma das realidades mais assustadoras de nossa época. Inovação se tornou uma espécie de palavra de ordem do nosso tempo. Mas como ter inovação na sala de aula sem professores interessados no que há de novo no mundo?

A memorização, diz o professor Li Jiang, já não tem o mesmo mérito do passado. Ele considera que o mais relevante não é o conhecimento armazenado, mas sim a forma e a agilidade com que utilizamos o conhecimento disponível. Ele diz claramente que a memória como carga armazenada está perdendo, nos dias de hoje, e perderá cada vez mais, muito de sua instrumentalidade. Ou seja: o que importa é o quão criativos nós conseguimos ser a partir do uso desse incalculável cabedal de informações que é a IA, o qual nos permite acessar a vastidão do mundo digital.

O objetivo do século 21 é fazer o aluno ser capaz de estruturar conhecimento, isto é, dotá-lo de aptidão para compreender o mundo em seu constante dinamismo, e estar permanentemente aberto para tudo que se transforma. Não só muda o conhecimento em si, como também muda o formato em que acondicionamos e pelo qual utilizamos esse conhecimento.

Os volumes gigantescos de dados e informações que a internet e os livros de hoje nos permitem acessar não podem ser armazenados, acumulados e memorizados na cabeça de um estudante como se memorizava a matéria contida nos limitados livros didáticos do passado, nos testes, provas e exames da escola da segunda metade do século 20.

Houve um tempo em que o conhecimento memorizado era o mais forte, senão o único, critério de avaliação e seleção. Isso tende a ser substituído quase totalmente, no futuro, pela “capacidade de usar criativamente o conhecimento disponível”. A quantidade avassaladora de informação dos nossos tempos tornou a memorização quase um poço sem fundo. Memorizar a avalanche diária de informações sistêmicas ou assistemáticas que consumimos é uma tarefa inalcançável. O que importa é o quanto desenvolvemos e abrimos a mente para o ato de compreender, medir, comparar, raciocinar e tirar conclusões.

Produzir conhecimento e desenvolver nossa disposição cognitiva para entender o mundo e pensar as alternativas de solução que a vida, o trabalho e as relações humanas põem diante de nós. O conhecimento está nas bibliotecas, ao alcance de todos, ou em proporções ainda muito maiores, no universo digital, em quantidades inimagináveis e com acesso cada vez mais facilitado. O acesso ao conhecimento, no entanto, continuará por muito tempo não sendo equitativo. Nos países mais pobres ou nos bolsões de pobreza disseminados por diferentes países do mundo, essa facilidade de acesso, na verdade, continuará não existindo para todos. O sistema educacional, isso é indiscutível, acaba sendo o espaço onde melhor se pode vencer essa voragem da desigualdade, que é, infelizmente, uma das marcas da nossa era.

Ao mesmo tempo, não é possível esconder que essa é uma tarefa ciclópica, gigantesca, para o Brasil moderno e para os professores da nova geração. Seremos capazes de estruturar o sistema educacional brasileiro a ponto de garantir apoio material e valorização institucional aos novos quadros docentes do Brasil, tornando-os agentes de um novo humanismo, tornando-os condutores de um ensino de qualidade para todos?

Yuval Harari faz uma advertência em seu best-seller “Homo Sapiens”: a velocidade da tecnologia é irrefreável e ela poderá ser enormemente desagregadora se não for acompanhada de uma nova filosofia humanista, de um novo modo de pensar a modernidade, uma nova atitude ante a velocidade dessas mudanças. Esse novo modo de ver as coisas terá que ser produzido por novos filósofos, pensadores consentâneos com o ritmo alucinante dos acontecimentos.

Tudo indica que esse futuro previsto por Harari já chegou. Os filósofos que possam reconhecê-lo, traduzi-lo e humanizá-lo, talvez ainda não existam, mas esse futuro já está aí.

Um caso muito ilustrativo destes tempos de tão surpreendentes e sinuosas mudanças é o da Suécia, cujas medidas reversivas na área da Educação mais recentes têm sido vistas como, de um lado, uma prova de sobriedade, e de outro, uma espécie de água fria na fervura da inovação. A Suécia havia tomado, no início dos anos 2000, uma iniciativa audaciosa e impactante: tornar a Educação básica massivamente digital. O governo sueco, agora, passados mais de 20 anos, reconhece que errou e está revendo os postulados de seu ímpeto revolucionário. Foi realmente uma experiência de excesso e saturação. A Suécia foi com muita sede ao pote e agora quer fazer o caminho de volta. A tecnologia havia entrado de avião a jato na educação sueca e os filósofos da educação não tiveram chance de meditar e refletir a tempo. Parece que Harari tem razão no que afirma. A tecnologia é a lebre, a filosofia é o cágado.

No final do século 20, na passagem para o século 21, havia no mundo da Educação duas posturas em conflito: de um lado, um grande entusiasmo pelas possíveis inovações; de outro, uma grande desconfiança com uma retração do desenvolvimento das crianças a partir de uma leitura em “três dimensões”: a leitura que articulasse imagem, texto e som.

O livro, na forma como foi universalizado há mais de 500 anos, com páginas de papel, bidimensional e linear, está gradativamente sendo substituído pela leitura digital. Inesperadamente, o projeto de educação proeminentemente digital, ao invés de aumentar, poderá acabar por reduzir o interesse dos alunos – e comprovadamente reduzir seus níveis de retenção.

Talvez uma das razões dessas dificuldades esteja mesmo nas preocupações de Yuval Harari: por trás da inovação, não existe ainda uma filosofia pedagógica humanista – tanto nos países escandinavos quanto no mundo todo – capaz de orientar linhas inovadoras de atividade educativa e medidas de bom senso para os novos padrões de material escolar sem incorrer nos riscos do tecnologismo e da desumanização. A sociedade humana, não apenas a sueca e a finlandesa, está perplexa e cheia de incertezas diante das tendências inevitáveis e assustadoras deste século.

Qual é a resposta que temos para a obsessão absoluta pelo celular que demonstram os jovens da geração Z? Temos uma crítica, temos consciência, mas não temos uma resposta. Li Jiang fala em mesclar, fala em uso dos recursos digitais basicamente como ferramentas de apoio, não como recurso primordial.

O fato é que nada é conclusivo nem definitivo ante a revolução tecnológica do nosso tempo. E a Educação é a área em que esse tema ganha os contornos mais preocupantes. Principalmente porque ainda temos poucas respostas e alternativas. É possível que esses filósofos do novo humanismo neste momento ainda estejam, quem sabe, surgindo nos bancos escolares, em algum lugar do mundo. Ou talvez ainda não tenham sequer nascido.

Estamos definitivamente diante de um admirável mundo novo. Debater se torna uma tarefa cada vez mais essencial. Porque o futuro é um livro aberto e poucos conseguem ler o que nele está escrito.

Autores José Fogaça